Tensão e desejo: o desenho reinventado

Vítor Hugo Leal
Investigador em História da Arte Contemporânea

A tentação de afirmar que estamos perante desenhos de escultores ou de pintores ou de artistas de Instalação é grande e falaciosa. É uma tentação que parte de uma perspectiva herdada da primeira metade do século passado, mais concretamente do formalismo greenberguiano, defensor do purismo do medium e das determinações das grandes disciplinas artísticas reduzidas à pintura e escultura.
Um dos elementos chave para compreender a arte da Era Pós-moderna – da década de 50 a 2011 – é o artista enquanto Artista, ou enquanto Artista Multidisciplinar, para aqueles que exigem uma especificação. A definição de cada artista reduzido ou subsumido a uma disciplina artística é errada e sobejamente praticada por leigos e especialistas.
Esta redução sine qua non de todos os artistas contemporâneos a uma única disciplina torna as demais disciplinas em que cada artista trabalha ou, em dado momento, explora como disciplinas preparatórias desprovidas de força e de autonomia, diminuindo as obras dos artistas produzidas nessas outras disciplinas, seja pela força do mercado seja pela perspectiva formalista de artes maiores e artes menores.
Nesta última questão surge a disciplina do desenho, remetida para uma inferioridade, para uma diminuição hierárquica que não reflecte a verdadeira importância desta e que a coloca subsidiária da Pintura, da Escultura ou das Media-Artes, agora em voga, consideradas como artes maiores. Estas disciplinas e macro disciplina, caso das Media-Artes, têm o mesmo valor técnico, ontológico, estético que o desenho. A hierarquização é uma construção exterior à produção artística, que não corresponde às práticas dos artistas e que tem sido combatida por alguns historiadores de arte.
O desenho tem sido, neste contexto, considerado como uma arte menor ao longo da História da Arte, tido como uma técnica mais do que como uma disciplina autónoma, ou pelo menos como uma disciplina autónoma com valor suficiente para se impor perante a Pintura, Escultura, Arquitectura, Vídeo-Arte. Pensar o desenho enquanto disciplina é uma tarefa por efectuar, mais pensar o desenho como espaço de experimentação e ruptura na História da Arte. A natureza do desenho, as condições materiais e as questões conceptuais que estabelecem os vectores do que é um desenho têm sido injustamente subvalorizados, tanto em termos históricos como comerciais, e estão por ser entendidas.
A distinção do traço e da linha, das técnicas, da estética, dos conteúdos e da poiesis definidores do desenho estão por definir, nomeadamente num contexto de multidisciplinaridade, onde outras disciplinas assomam a esta e esta a outras disciplinas. O uso do desenho na fotografia e Vídeo-Arte é tão fundamental como é entender a fotografia e a Vídeo-Arte no campo disciplinar do Desenho na Era Pós-moderna.
Na Era Pós-moderna a multidisciplinaridade tem sido um factor de ruptura perante o modernismo. Cada disciplina tomou para si elementos de outra ou outras disciplinas, mais do que apenas do medium ou media.
A visibilidade maior da pintura e da Vídeo-Arte colocam estas disciplinas no centro dos olhares, que as reduzem ao medium. O desenho revela as potencialidades e as explorações experimentais patentes nas demais disciplinas ao longo da segunda metade do século XX.
O desenho pós-moderno encontra um campo de expressão onde o signo é subvertido. A relação entre a representação, o que é representado e o conteúdo é fendida e colocada em causa. O recorte exacto do objecto removido de qualquer contextualização destitui-o de relações pré-estabelecidas, lançando o observador na relação directa com o desenho. Esta situação criam um jogo de tensões entre formas, objectos desterritorializados, que valem pela sua apresentação, mais do que qualquer acto de representação, e as associações intuitivas ou racionais a serem constituídas pelos observadores, em construções múltiplas, em construções que provocam no observador a necessidade de entender e se relacionar com a obra num jogo de desejo pela construção de sentido.
Os cadernos de botânica, que eram comuns para os botânicos amadores do século XIX, são revisitados e reinventados pelos desenhos de Miguel Palma. Nestes desenhos as imagens fotográficas de estruturas industriais, fábricas, guindastes sobrepostos por folhagem que excede o enquadramento da imagem fotográfica.
Os desenhos de Miguel Palma são povoados por unidades industriais, partes de máquinas industriais cujo funcionamento desconhecemos ou do qual temos uma ideia externa do seu objectivo. É uma tensão semiótica que se estabelece pela via dos afectos, pelo desejo de controlarmos o Mundo, de entendermos e explicar o que é visto, o que é percepcionado, o que é apresentado. Mesmo quando não constitui uma representação, apenas uma apresentação, é entendido como representação, como enquadramento e imagem de algo que se encontra no exterior, com função com significado prático.
O lugar da engenharia e da industria como elementos transformadores da paisagem, do Mundo em que vivemos, revela-se com evidência nas obras de Miguel Palma para quem, “Em relação à engenharia, existe uma paixão: a arte de contrariar as dificuldades que o homem tem em dominar a natureza é uma paixão quase nostálgica, de uma tardia revolução industrial, como foi a nossa. Finalmente, a arquitectura sempre foi um enorme desejo desde criança. Sempre gostei de desenhar, construir e imaginar espaços para viver.”
São os elementos que compõem a nossa vida, o que nos rodeia e o que habita a nossa mente. Máquinas que constroem as máquinas em nos movemos, pelas quais comunicamos e os espaços em que vivemos.
A estas questões encontramos a tensão entre a obra no seu valor técnico e a obra no seu valor conceptual. O valor atribuído aos objectos produzidos industrialmente, mesmo quando obras de arte, e a re-construção dos objectos através da relação de uma técnica bio-mecânica directa, i. e. pela mão do artista, revela os paradoxos e as questões por discutir no universo da arte. Tal é tanto mais relevante se considerarmos o contexto de um momento onde a arte é reduzida por críticos e historiadores a pressupostos matemáticos de produção e reprodução por meios digitais, o desenho, irreproduzível apenas por meios técnicos e único em termos conceptuais e formais, é caracterizado por uma arte menor, em termos de historiografia, de crítica de arte e de valor de mercado.
Ao recorte associa-se a miniaturização do Mundo, do que se encontra fora do nosso alcance, porque elementos que partem da História, porque elementos de um imaginário, seja um Porshe 911 Carrera com um cockpit de uma aeronave militar acoplado no tejadilho ou uma maquete de arranha-céus assente em braços metalo-mecânicos com aquários como fundações,
Para Miguel Palma «as máquinas representam sempre essa possibilidade de fugir de viajar de divagar» SOL, são máquinas que apresentam a possibilidade de viajar no espaço, no tempo, no imaginário ou em todos os três. De Deus ex machina para Homo ex machina concretiza um dispositivo de fender o óbvio e provocar a tensão que conduz ao desejo.
São tensões que criam uma dinâmica de relações e uma ligação afectiva com o observador sempre latente, sempre por concretizar, sempre por clarificar. O significado está em suspenso num limbo de multirelações dependentes de cada ligação com cada observador.
As máquinas que criamos e que nos (re)criam, compõem um universo de vivência e imaginação. A máquina mecânica, assim como a digital, faz parte do universo cultural, da linguagem da imagem, do catálogo do século XX. Tornam-se fontes de exploração conceptual, num momento onde narrativas são abolidas ou desconstruídas ou apenas postas em causa.
Das imagens do arquivo de imagens ocidental, os objectos do mundo industrializado adquirem uma perspectiva que remete para a esfera da infância, para o olhar o mundo a partir da perspectiva do imaginário infantil. Contudo a ironia e o humor de Miguel Palma revelam uma seriedade cujo entendimento avança para uma crítica deixada em aberto, num juízo em suspenso.
Há uma superfície imanente de relações que são produzidas, são novas relações, não uma mera reprodução de ligações ou eventos pré-determinados pelo real ou imaginário. Ocorre um novo espaço social não-existente antes da sua criação imanente. É um desejo latente, saído da tensão do previamente existente face a algo que é criado num novo modelo. As máquinas, os objectos, os edifícios não são apenas modificados, re-territorializados. As imagens dos edifícios são autoreferenciais, remetem para si mesmas, não são representações clássicas de algo exterior ao desenho, mas antes subversões destas representações. São apresentações de objectos concretizados de um imaginário que se torna actual, que se realiza.
Há um passo que vai para além do Ready-made, para além do nominalismo duchampiano. No caso dos trabalhos no domínio da disciplina do desenho acentua-se o entendimento das experimentações pós-modernas como integradas numa gramática já resolvida, encerrada, procurando a partir dessa língua materna uma nova ruptura, novos elementos exteriores ao edifício da Era Pós-moderna.
Porém o desafio de Miguel Palma é a manutenção do desejo em tensão, é a manutenção da existência do próprio desejo. É sabido e consensual o desejo esgota-se na sua concretização. Como concretizar o desejo sem o eliminar é um jogo que observamos em directrizes de imaginário relacional ligado à infância, à interpretação em constante renovação, reinvenção e transformação. O imaginário de Miguel Palma é de multiplicidades que intensificam e re-estruturam o desejo numa constante redescoberta.
A tentação de pensar a obra numa dimensão lúdica revela o desafio, é uma falácia, há uma forte componente de bom humor, que é de grande seriedade e de profundidade insuspeita.
A liberdade do desenho em lidar com a reconstrução feita de múltiplos elementos encontra-se patente, como campo disciplinar. O uso da fotografia, da fotografia artística e da fotografia documental de pintura, o uso da imagem constituída por imagens díspares no tempo e no medium e no conceito encontram uma nova realidade. Esta estruturação revela-se numa consistência traçada pelo desenhador. As obras de Noé Sendas tiradas da colecção Collector, 2007, são como cadavres esquis na sua recolha, mas numa união traçada pela firmeza do traço que une os fragmentos de imagens numa imagem unitária. É esta a tensão e o desafio, pulsante de uma imagem em confronto com os fragmentos das imagens anteriores. Contudo é esta junção de uma continuidade na ruptura que lhe confere as directrizes próprias do desenho, de traços rompidos agora continuados. Não são obras fotográficas, nem colagens no sentido tradicional do termo. São impressões fotográficas em colagens determinadas pelas linhas determinadoras das formas, são as linhas em continuidade que unificam as formas, que tornam uno e par o múltiplo e o díspar. São actos de Drawing Jaming, de uma disciplina artística que tem sido entendida como um mero suporte artístico.
É o resultado da colecção de imagens que compõe o arquivo de imagens da história da arte Ocidental. São afinidades que se estabelecem numa perspectiva de um artista que constrói imagens que lidam com o familiar, desterritorializando e criando algo outro, sem abdicar dessa relação com o passado que se estabelece pela imagem de base, de tempos que se congregam num mesmo tempo.
Van Gogh & Rubens vivem para além das suas obras, dos seus auto-retratos, as imagens são cultura, pensamento, identidade que forma a cultura Ocidental reformulados no enquadramento de Noé Sendas. Mais do que rostos de artistas são conteúdos, encontram-se impregnadas de significado para além da representação original e clássica. A representação do auto-retrato é subvertida, expande-se para além da apresentação formal do rosto de um dado artista, somos nós que nos encontramos ali porque somos nós que entramos no universo de Noé Sendas.
Sarah Lucas & Velasquez representam duas figuras provocadoras que fenderam e redefiniram directrizes artísticas. Velasquez é considerado uma figura consensual na História da Arte, teve reconhecimento em vida. Sarah Lucas teve e tem reconhecimento em círculos restritos da história da arte. Diferentes níveis de reconhecimento, de provocação revelam-se numa obra abstracta. A figura constituída por fragmentos é uma construção que não remete para alguém exterior, que contém em si o elemento provocador e subversivo, de um desenho executado por colagens de imagens fotográficas.
Não alheia a esta análise está o projecto que deu origem à série Collectors de Noé Sendas, o Arcades Project de Walter Benjamin. Obra fragmentária, composta maioritariamente por imagens da vida urbana de Paris, imagens definidoras de uma cultura, de um pensamento colectivo, de uma identidade popular. É um dos mais importantes retratos críticos da cultura Ocidental sobre a cultura quotidiana, sobre a cultura de massas, sobre o que constituí a identidade Europeia, em Walter Benjamin, e Ocidental, em Noé Sendas. Como o Arcades Project estabelece um jogo de fragmentos enquanto fragmentos, cuja dissolução fica por realizar, é um desejo que se perpetua, porque não se concretiza. É a tensão mantida que permite a continuidade da exploração do desejo que só deixa de existir quando concretizado, quando desprovido de tensão.
Rui Sanches olha para os objectos, para o Mundo para a Arquitectura como desenhador. “Quando cheguei aos Estados Unidos, interessou-me a maneira como faziam as casas, a serem construídas na rua e a diferença para a construção civil europeia: não havia tijolos, construíam tudo com madeira e esse aspecto quase de desenho, de esboço, que as casas tinham, quando estavam a ser feitas, atraiu-me muito.” A força do desenho no olhar de Rui Sanches é uma tensão exploratória de uma busca, da procura da resposta a uma pergunta por fazer.
Nos desenhos de Rui Sanches observamos elementos técnicos e estéticos da pintura num jogo de materialização e desmaterialização. As formas rectilíneas e rígidas confrontam-se com um espaço de abstracção. A rigidez e inflexibilidade é envolta num campo de expressividade abstracta. O estático apresentado por formas rectilíneas e rigidamente desenhadas é superada pelo movimento apresentado por elementos expressivos e informes de vectores. São desenhos de bidimensionalização, aplanam e subvertem a tradição Ocidental da representação tridimensional no plano bidimensional. A bidimensionalidade é afirmada, é característica do suporte devidamente explorada, é assumida sem reservas.
vandanuno e a fractura como tensão e o desejo como submersão no espaço desprovido de referências estáveis é revelado na multiplicidade de planos unificados no espaço, no tempo, na visão. Paradoxalmente dividem os planos unificados no espaço do enquadramento, uma tensão que impede a satisfação do desejo de unificação, de entendimento de controlo do Mundo. Subverte a representação pela relação entre imagens sempre em tensão de diluição e afastamento, nunca afastadas, nunca agregadas, mas sempre no momento de suspensão da concretização. Um objecto, talvez um transformador ou caixa de derivação de energia eléctrica sobre um plano bidimensional horizontal e uma imagem feérica de uma figura feminina, semi-coberta por uma barreira visual, ladeada por elementos vegetais estabelece uma relação de fluxos. A energia eléctrica que nos habita, a electricidade dos impulsos neuronais, da energia eléctrica que activa os instrumentos e meios da vida contemporânea – televisão, frigorífico, lâmpadas – é movimento, é direcção e, porque todo o que se move estabelece uma temporalidade, é tempo. Movimentarmo-nos do ponto A para o ponto B, é passarmos do minuto 1 para o minuto 2. Ser no espaço é ser no tempo e a nossa mente, o nosso subconsciente congrega todo o tempo passado, da nossa vida e os testemunhos de segunda ordem obtidos pela literatura, pela Arte, pela historiografia. É um desejo de unificação do espaço, do tempo, do Homem pós-moderno estilhaçado em múltiplos fragmentos. É na vectorialização dos objectos, na imagem como campo de direcções que a disciplina do desenho se estabelece como campo de base no uso do medium fotográfico e de alguns elementos da disciplina fotográfica artística por parte de vandanuno. A disciplina do desenho é visível numa primeira relação com as formas de transformadores e caixas de derivação da série de desenhos A Dobra do Tempo, mas também nas linhas de ruptura de vidros estilhaçados como desenhos sobre desenhos feitos de imagens fotográficas, onde formas antropomórficas surgem numa tímbrica diluição de sombreado, remetendo para a técnica e estética do desenho enquanto disciplina artística.
As diversas disciplinas que vandanuno explora articulam-se em cada uma. Ao desenho assistem a fotografia, a pintura, a instalação da mesma forma que nas instalações assistem a escultura, o ready-made, a performance, a música, a fenomenologia, a epistemologia e a óptica. É a maturação de um dado do projecto pós-moderno, já resolvido, já encerrado e tornado norma, para a busca de um novo paradigma, de novas linguagens.
O desenho de Ana Matias é pautado por linhas definidoras dos espaços, através de formatação da linha e do lettering desprovidos de expressividade. A expressão encontra-se no uso do conteúdo da palavra, da associação de significados. Desde objectos, conceitos e afectos palavras encadeadas lançam-nos num agrupamento de significados de relações inusitadas e intuitivas cujo sentido cabe descortinar, cuja organização cabe ser estruturada pelo observador ou deixar-se submergir no turbilhão de significados dos referentes encadeados. São relações estabelecidas entre a autora e o local da casa representado, os espaços de vida que constituem os diferentes locais e mobiliário da casa. A casa é apresentada na tensão que as divisões estabelecem na artista, criando relações com os objectos e afectos que fazem parte da sua experiência de vida. Os desenhos em vídeo revelam esta dinâmica do desenho na sua relação com outras técnicas e media. Traços entrecruzados em sobras lineares que ganham o dinamismo pelo movimento do fluxo da câmara de vídeo.
Miguel d’Aguiam com a sua máquina fotográfica explora um Mundo tornado desenho. Linhas, traços e sombreados definem as imagens de Miguel d’Aguiam. São captações de traços e espaços de luz e sombra, explorada através do recurso a sombreados, de linhas recortadas, dobradas e redireccionadas para criar vectores e dinâmicas constituem a exploração de materiais maleáveis. O contraste de elementos rígidos em linhas que se cruzam, abrindo espaço de sombras e luminosidades texturadas em técnicas e estética devedora do desenho. A tensão de uma indefinição da disciplina determinadora da sua obra, o desenho fotográfico ou a fotografia-desenho coloca-nos perante um contraste permanente e inquietante. O enquadramento dá lugar à exploração das texturas, das linhas e traços, dos jogos de sombreado e claridade que determinam uma cartografia do desenho. São fragmentos do real dobrados à vontade do desenhador que colabora com o domínio técnico do fotógrafo.
Estes trabalhos demonstram a necessidade de re-escrever a história da arte contemporânea, assim como de re-aprender a fazer crítica de arte.
O campo disciplinar é feito de multiplicidades disciplinares, a disciplina do desenho expandiu-se, como as demais disciplinas, na segunda metade do século XX. Ganhou força e determinação. Disciplina de experimentação ao longo da História da Arte foi capaz de se reinventar, de modos construtivos e desafiantes. A tensão do inusitado, da experimentação e da construção de novas linguagens suscita relações de desejo na nova relação com o desenho. São relações de desejo porque sempre em tensão, porque em busca de entendimento, de reconhecimento e de novas ligações com as subversões patentes nestas obras, seja pela forma ou pelo conteúdo.