Vítor Hugo Leal
Investigador Associado em História da Arte Contemporânea
do Instituto de História de Arte
vandanuno surge unido em multiplicidades de forças, de intensidades, de desejos, todas organizadas numa consistência determinada por pulsões artísticas. A força vital da vida é elemento fulcral potenciado nesta união. Encontramos em vandanuno uma unidade artística rizomática, uma confluência de forças em pulsões criativas de dois artistas que se concretizam numa inseparável identidade, como um artista. Vanda e Nuno são um múltiplo.
O pensamento intuitivo e reflexivo, a techné e a episteme, a arte e a vida estabelecem coordenadas múltiplas e variadas que se organizam num campo fértil de multidisciplinaridade criativa consistente que desafia e provoca a um nível multissensorial.
Um nome sem maiúscula, vandanuno, que denuncia a rejeição da supremacia das determinações exteriores, dos agenciamentos molares. Demonstra a capacidade de lidar com estes e torná-los instrumento artístico. É um laboratório artístico gerido por um epistemologista que afinal é artista, que aprendeu que para expressar o que deve ser dito é preciso criar arte. O campo pré-linguístico impõe-se no seu corpus de trabalho, pela actuação e pelo objecto de criação, num território nuclear, no plano da vida como plano de imanência.
“O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem do pensamento, a imagem que o pensamento proporciona sobre o que significa pensar, fazer uso do pensamento, orientar-se no pensamento…”(1) São as condições de formação deste plano de imanência que vandanuno torna no seu plano de imanência. O momento anterior à individuação, ou despojado da individuação, afirma-se como território de trabalho e sujeito de análise e entendimento. Uma análise onde a intuição, instituição intelectual desprezada, mostra a sua relevância e acuidade.
Porque o Homem enquanto Máquina-desejante apenas encontra o seu funcionamento correcto aquando da avaria, quando uma perturbação ou ruptura acontece vandanuno fende-o e provoca-o. É a presença de uma exterioridade outra, uma ruptura efectuada no espaço do agenciamento afectivo, que nos conduz de afecto em afecto, como um processo de relações inalcançáveis, que sofre com a interrupção. Há uma continuidade, uma prolongação de uma relação com um objecto, com um sujeito que nunca se alcança. É o inalcançável que estabelece a tensão entre nós e as obras de vandanuno. Algo de desejante pelos afectos pela possibilidade de condições de conhecimento de concretização, mas não das condições de concretização. É a possibilidade que nos captura. A possibilidade das condições de libertação, de desnudamento, de entendimento do mundo em que estamos lançados e com o qual interagimos.
A diversidade matérica e multidisciplinaridade artística criam um território profundo de coordenadas que perturbam e provocam. O intelectual e o sensório são pontos de ligação para a captura.
vandanuno constrói multiplicidades para explorar os modos de fazer multiplicidades para entender e revelar as condições de viver uma vida indefinida. Porque “O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente.”(2) vandanuno não hesita em procurar entender os processos de formação do Homem, revelá-los. Uma formação que se estabelece na sua relação primordial com o espaço-tempo, com a capacidade de se manipular a noção de Mundo e de Vida.
É a vida não-edipiana que reside no subconsciente, enquanto máquina-desejante, que é desmontada enquanto uma natureza concebida como processo de construção. Processo de construção de significados, de imagens, do mundo em que nos encontramos lançados, da vida enquadrada pela perspectiva de cada um de nós que é sempre-já uma perspectiva em sociedade.
Contudo a máquina-desejante apenas funciona quando avariada, quando submetida a uma perturbação profunda. O Homem em situação comum existe enquanto uma máquina-técnica desconhecedora das condições do seu surgimento e das directrizes que determinam o seu funcionamento. São essas condições de possibilidade do modo de ser, do modo de percepcionar, do modo de ver e pensar que vandanuno explora, e através das quais ele fende e avaria a máquina-desejante, activando-a deste modo. Cria um espaço de derradeira tensão, de captura do sujeito que fica refém deste jogo epistémico, onde a fenomenologia é subsidiária.
Um agorafóbico com claustrofobia
As pinturas negras, da série Nunca Mais, de vandanuno estabelecem um campo de desmaterialização do espaço, onde a saturação do negro investe numa técnica de captura do incauto observador. Uma das técnicas utilizadas que despoletam a imersão de quem avança para apreciar a pintura, que de simples pintura apenas tem a aparência primeira. Espaços negros com aberturas, estreitas passagens no topo, inacessíveis, que deixam entrever um espaço branco exterior, aberto em plenitude sem referências.
Há dois espaços com os quais lidamos em cada uma destas telas, com os quais nos debelamos num sentido de estranheza e paradoxo entre a claustrofobia e a agorafobia. Espaços negros ocupam o espaço de captura, enquanto no topo, única referência efectiva, uma abertura rasga a negritude e deixa o enunciado de um espaço exterior de brancura. Ambos os espaços são caracterizados pela ausência de referências espaciais, pela ausência da existência de algo que não o espaço de inscrição vazio. A abertura é um elemento flutuante, embora delineado, cuja natureza da sua materialização é incerta. É uma incógnita que apenas apresenta uma passagem estreita de alcance desconhecido, como desconhecido é o que para além desta se encontra.
O espaço negro torna-se de imediato claustrofóbico, é um espaço desconhecido que nos é familiar, é o espaço dos grandes agenciamentos. O espaço que existe nos limites do nosso corpo, a tímbrica alvura da abertura inacessível é apenas uma materialização sulfurosa da abertura enquanto dispositivo de possibilidade de elementos neste espaço negro. Degraus ou obstáculos por identificar, por revelar acentuam a envolvência negra que nos enleia. Aberturas de luz que abrem para um espaço desconhecido não-familiar, um desconhecido outro, exterior, espaço de potencialidades por actualizar, que causa estranheza.
O indivíduo encontra-se preso aos agenciamentos molares, aos grandes agenciamentos que determinam a vida em sociedade, que modelam a nossa percepção, o nosso modo de viver, o nosso modo de existir em sociedade, o nosso modo de percepcionar o Mundo. São nestes agenciamentos que vivemos. É a cave, espaço de absorção, a vida em sociedade em que nos encontramos lançados que nos envolve e absorve.
A não-inscrição é determinada pelo acontecimento que não acontece. Há algo que não acontece porque há um buraco negro que suga o espaço, que mantém a captura em tensão, entre o acontecimento e a sua vida intima, a sua esfera privada. Nas pinturas de vandanuno o experienciador mantém-se em suspenso, por algo que não acontece. Uma libertação em potência que não se concretiza pela absorção por parte do espaço negro que nos envolve.
A deslocação da materialidade da pintura para um plano elevado acima da cabeça do experienciador, o espaço negro, homogéneo e absorvente, provoca um primeiro efeito de captura que enleia aquele que interage com a obra. Fica caído no espaço negro de inscrição efectivada, dos agenciamentos sociais que nos determinam, conduzindo-o para o topo, para o espaço de abertura plena, desprovido de qualquer inscrição.
A negritude plena encontra-se já provida de total inscrição, é a saturação derradeira, porque é um espaço que nos absorve, que nos suga, que nos captura em agenciamentos molares. Encontramo-nos envolvidos por este jogo, olhando para cima, para o enquadramento da pintura acima da nossa cabeça, que torna inalcançável a estreita abertura branca no topo, que rasga o território de plenitude. A abertura total, implica uma estreita passagem, um desconhecido total, porque exige que nela inscrevamos algo, que construamos para além do que se encontra já construído.
Esta dualidade estabelece uma incerteza no seio da razão, determinada pela intuição, sobre o espaço de onde a luz escoa, face à ausência de referências que são necessárias construir ou descobrir. Há um espaço de incerteza sobre as condições de possibilidade de libertação. O choque da descoberta e a necessidade de construção nesse espaço exterior. Um espaço exterior, que na infância é medeado por figuras paternas e maternas que nos orientam, é aqui marcado por algo dominado pela estranheza de ausência de elementos estruturantes, de directrizes orientadoras. Há uma acomodação a um espaço desprovido de referências espaciais, mas com uma presença com ligações afectivas que nos envolve. O espaço negro, dos agenciamentos sociais, é portador de um sentido claustrofóbico, que contrasta com o espaço exterior de incerto acesso. O espaço exterior para além daquela estreita abertura no topo é espaço de abertura a uma condição de inscrição total, numa brancura fria. Uma superfície de inscrição motivadora de receios agorafóbicos.
Encontramo-nos lançados neste mundo, um espaço enquadrado que se assume como espaço que nos rodeia. O espaço fendido pela saturação do negro e deslocação do espaço de passagem para o topo. Local de imersão que nos captura para a envolvência do negro olhando para o alto, para o desafio, para a provocação, para o enfrentar dos receios num mundo desnudado de referências, de pontos de apoio e equilíbrio.
A operatividade é potenciada pela técnica de repetição numa série, de uso dos negros com uma sulfurosa abertura branca, numa técnica de envolvência e intensificação da estranheza. É a condição do Homem no mundo, um mundo em constante transformação. Onde, ao contrário da teoria na alegoria da caverna de Platão, o desconhecido é algo permanente, o conhecimento não existe algures no exterior alheio ao Mundo e ao Homem. O Homem é ele mesmo uma construção de si por si. O Homem constrói os saberes como modo de controlo do mundo. O saber é um dispositivo de construção de perspectivas do Mundo, para nos prover a noção familiar de controlar o que nos rodeia, o Mundo em que estamos lançados. Na realidade o Mundo é o desconhecido, onde os paradigmas que determinam a nossa relação com o mesmo revelam uma familiaridade, uma falaciosa sensação de envolvência, que em períodos de transformações nos constringem, contudo a outra construção que é necessário efectuar, construção do Mundo, dos paradigmas sobre os quais viveremos causa um temor mais acentuado pela estranheza do exterior, do não familiar.
O Homem que se raptou e não deu conta
Espelhos e sedução conduzem ao rapto para um espaço que se abre dentro do espaço em que nos encontramos. Um espaço novo em continuidade do espaço em que a obra se encontra, feito com as fronteiras deste. As paredes, o tecto, o chão são reestruturados num outro plano, num novo espaço aberto dentro do primeiro espaço, uma prolongação de um mesmo espaço tornado outro.
Nas instalações da série Além do Cerco, trabalhos mais recentes, um novo campo onde a “fase do espelho” lacaniano desempenha um papel fundamental para o entendimento da nossa relação com estas peças e com o espaço subvertido pela subversão de nós mesmos. Seduzidos entramos no espaço da obra, dos espelhos que efectivam o rapto derradeiro.
São instalações onde objectos usados se articulam com plástico industrial negro e espelhos. Espelhos que nos projectam num espaço simulacral, que nos absorvem em caves, em divisões oblíquas despoletam o desequilíbrio de quem percepciona através do seu reflexo, do seu simulacro. O real virtual impõem-se pela especularidade de um simulacro reflexo, uma queda no universo virtual que se actualiza na vertigem em que o espectador é lançado e com a qual tem de lidar. Os jogos de espelhos exigem do espectador uma presença activa. A queda, que pode ser feita na profundidade vertical assim como na horizontal. Encontramo-nos, em sem título, num espaço oblíquo que é um espaço outro do espaço em que nos encontramos, somos lançados para esse espaço oblíquo que amplia e onde caímos pela experiência sensual do nosso duplo.
A diferença entre o olhar e o ver estabelece uma relação fundamental para a derradeira captura actual na interacção com as instalações. O momento de passagem do eu fragmentado da criança que deixa de ver no seu reflexo o outro, um bébé, e passa a identificar-se no reflexo para o qual olha, vê o “eu”. Nós, como a criança no estado do espelho, vivemos a unificação com o nosso reflexo, olhamos para o simulacro e vemo-nos num espaço unificado. Seduzidos pelos objectos, uma cadeira em processo de desnudamento, formas análogas a um par de sapatos, um fio-de-prumo orientador conduzem-nos na sua materialidade, como ponto de apoio do real para um espaço em que nos precipitamos, real virtual. Raptados pela imagem, ou parte da imagem de nós mesmos à qual nos adequamos, pela qual entendemos uma unidade com o espaço. Contudo é um espaço de prolongamento, em desequilíbrio, que se abre. Somos raptados por nós.
Há uma queda que desafia a definição de queda vertical, determinada pela gravidade. Em sem título, num jogo de espelhos com um fio-de-prumo cria o paradoxo, a derradeira estranheza da vertigem de uma queda em profundidade horizontal. Caímos com o nosso reflexo na parede, elevada, em contraste com o fio-de-prumo que se impõe na vertical para nos lançar na horizontal, nessa queda outra de uma experiência do corpo familiar no reflexo especular de continuidade. A queda ocorre com a estranheza de uma familiaridade subvertida. A identificação da imagem reflectida, familiar, é subvertida por um espaço intermédio que nos lança, pelo fio-de-prumo num segundo espaço virtual onde agora habitamos na derradeira queda.
A arte surge como uma presença forte em contínuo desafio e constante crítica às determinações que pautam a sociedade contemporânea. Há considerações que permanecem intemporais, como na filosofia clássica, que vandanuno explora, não obstante especificidades artísticas que habitualmente são resumidas a materiais e técnicas.
Tal é o desafio de vandanuno. Uma arte que revela os sintomas do momento presente, de um período de exposição da queda de uma era histórica, da falência e revelação da sociedade da Globalização. As aparências e as estruturas que as sustentam são exploradas num jogo de revelação pela insinuação do que os plásticos cobrem. O plástico negro, material que dominou e domina a sensibilidade táctil, visual, auditiva e olfactiva do nosso quotidiano.
A sensualidade do plástico, a sua tactilidade, o seu odor, a sua visualidade fazem parte nuclear do universo Pós-moderno, vivemos rodeado por ele. O escritor norte-americano Norman Mailler renegava o plástico como sendo um material de indiferença que iria criar um universo de sensações tácteis adormecidas, contudo revelou-se um material marcante e determinador de novas sensações na Era Pós-moderna.
Um material que domina as texturas e as construções ao longo da segunda metade do século XX. Ele cobre o Mundo, fruto do petróleo, fruto de uma construção da sociedade Ocidental pós-industrial alcança um novo estatuto de sensualidade. Desterritorialização do material, re-estatutização de um material que é visto numa perspectiva desprovida de apelabilidade no seu estado comercial. Adquire textura, adquire movimento, adquire um pregueado sensual quando manipulado por vandanuno.
Uma cadeira semi-coberta de plástico negro em tensões e volutas, sobre um espelho em situação de descentramento, oblíquo nos seus cantos face aos pés da cadeira desenvolve uma relação voyeurista. A cadeira que se insinua por entre o plástico negro revelando-se, num jogo de sedução. O espelho apresenta o espaço inferior da cadeira em projecção de profundidade para um novo espaço que se abre no solo, uma cave virtual que se abre perante nós.
Uma cadeira rectílinea, masculina, semicoberta lança-nos num estado de suspensão no espaço virtual aberto, rasgado, fendido pelo jogo de espelho sob os nossos pés. Directo, imediato sem sedução, mas numa eficaz captura peremptória e afirmativa.
O pregueado estabelecido em dobras determinadas por uma relação com o acaso. É na relação com o modo como o plástico se deforma e a busca de um controlo desse fluxo de transformação que se criam os pregueados visualmente tácteis. Pregueados que abrem espaços de revelação do que ocultam, espaços de insinuação, numa dicotomia de revelação e sedução. Onde o plástico negro, produto industrial, pouco nobre, desprovido de sensualidade na sua forma comum adquire um novo estatuto num espaço-tempo próprio, o espaço-tempo da obra de arte.
O plástico negro como espaço de desnudamento, porque já pleno, porque já inscrito, revela-se em movimentos de pregueado. A sua relação com os objectos que cobre ou desnuda revela uma sensualidade nuclear, que intensifica a relação, que modela e estimula o desejo através de uma ruptura na máquina-desejante. Provoca o caos e nele capta um nexo nascente. Reconduz o olhar, as sensações e os afectos; provocando o caos para nele captar um nexo nascente.(3)
Há uma evidente exploração do “ agenciamento maquínico de corpos, de acções e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros” em equilíbrio com a desconstrução do “agenciamento coletivo de enunciação, de actos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos.”(4)
A Dobra do tempo não está no código da estrada
Na série As dobras do Tempo surgem desenhos de traços finos de extrema força, que conduzem o olhar e o corpo a conexões. Módulos de ligação impõem-se na brancura da folha estruturando os vectores de comunicação do mundo enquanto espaço de inscrição. A brancura do mundo como superfície de inscrição onde agimos é o espaço abstracto da comunicação da derradeira comunicação num momento pré-linguístico. São formas saturadas de sentido que se articulam no enquadramento, em equilíbrio e desiquilibrio de um espaço puro sem referente ou ponto de orientação. É o renegar dos modelos e mapas que nos furtaram do real, é o momento em que o território precede o mapa, o território pleno na sua alvura, onde as linhas de força que estabelecem conexões actuam. Só na cristalização destas podemos identificar as direcções, as concretizações, o equilíbrio da vida. O depuramento resulta numa rejeição do artifício da substituição do real pela imitação(5), onde o espaço branco, vazio, na plena abertura à inscrição rebate-se.
O real determina a representação nos desenhos de vandanuno, não há jogo de imitação ou substituição do real pelos signos, mas antes o inverso. O real, o tempo como é experienciado em conexões, em ondulações e afirmações, determina as formas, as ondulações, as dobras e intersecções. Um tempo que é sempre uma determinação no espaço com diferentes direcções. Atribuir determinações espaciais, dobras ao território vazio da folha branca é uma determinação temporal que ocorre na folha branca. O signo revela-se nesta apresentação do tempo, não remete para outro elemento exterior, é o tempo ele mesmo a concretizar-se no espaço. Porque o tempo apenas ocorre no espaço do mesmo modo que o espaço apenas ocorre no tempo.
As associações a estabelecer face aos finos traços ou formas mais espessas são diversões do real. Cabos e fios de electricidade com caixas de derivação, constituem um afastamento do real, que se encontra nestes desenhos. O tempo apenas pode ser determinado pela existência no espaço, são as dobras, os vectores e pontos de apoio e ligação que determinam o tempo, a sua existência, a sua materialidade, a sua passagem. Porque o tempo tem direcção, move-se ininterruptamente. vandanuno cria uma dobra no tempo em cada desenho, determina em cada folha um recorte no espaço, um elemento desmembrado face ao espaço total, mas mantendo ainda assim uma conexão com este. Neste espaço da folha concretiza-se um tempo próprio. É um tempo independente do tempo convencional, linha temporal com as suas próprias direcções, intersecções que determinam um futuro que ocorre no presente através das escolhas. O futuro não é uma linha recta imutável, é um conjunto de possibilidades com diferentes direcções, ondulações e pontos de mudança de direcção, pontos de intersecção onde é necessário efectuar uma escolha.
Assim cada dobra constitui-se como um espaço com um tempo próprio, exterior ao tempo convencionado que se desenvolve em determinações estabelecidas pela sociedade, qual código da estrada. Contudo a dobra é a criação de um tempo paralelo, com as suas próprias determinações, entrar na dobra é adequarmo-nos imediatamente a essas determinações. Como uma obra de arte que abre um espaço-tempo paralelo, não alheio ao convencional, mas não determinado pelo convencional. Há uma relação de forças entre um espaço que integra e um tempo outro que permite uma crítica do intemporal.
A intuição e a racionalização encontram-se em estreito entendimento com o equilíbrio entre techné e episteme. vandanuno trabalha neste campo onde assentam o conhecimento e os discursos, as condições de possibilidade dos mesmos, revelando a situação da sua época. Em Dobras do tempo demonstra a possibilidade de existência de vários sistemas que interagem, que se afirmam em coexistência. É uma revelação sobre as condições onde a realidade ocorre e como ocorre, das condições de possibilidade de concretização dos sistemas que determinam a legitimação do real e do conhecimento.
A folha branca é o espaço puro de inscrição onde o acontecimento ocorre. É um espaço de plena abertura aos vectores do tempo, do movimento das intersecções e curvas que caracterizam a temporalidade e que não se encontram exaradas no código da estrada, as decisões ocorrem no momento.
Dobrar o tempo é criar um projecto de possibilidade para o futuro. Uma dobra no tempo é o que permite viajar no tempo, porque é sempre uma viagem no espaço. Toda a dobra no tempo é uma inscrição no espaço. É este espaço em branco que abre às possibilidades do projecto futuro. É o espaço-tempo da obra de arte que vale por si, não é um mero signo que remete para algo exterior a si mas é em si, por si, consigo numa vivência própria. É um real pleno.
1 Gilles Deleuze, O que é a Filosofia, Ed. 70
2 Michel Foulcault, As Palavras e as Coisas, Edições 70
3 José Gil, A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e Metafenomenologia. Miguel Serras Pereira (trad.). Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2005
4 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Kafka. Pour une littérature mineur, Paris, Minuit,1975
5 Jean Baudrillard, Simulacra and Simulations, Stanford University Press, 1998